sexta-feira, 26 de maio de 2017

Comida: uma forma de expressar afeto (em Buenos Aires)

Lembro-me de cenas antigas relacionadas a comida que instintivamente me fazem recordar de bons momentos de afeto[1]. O cardápio não é tão requintado, mas as lembranças a que me remete são! 

Macarronada, frango e maionese aos domingos na casa dos avós maternos. Almoço de domingo era dia de correr com os primos na rua, de querer jogar bola com os meninos maiores e não poder (“Vocês são carta branca”, diziam os grandões da rua), era dia de tomar chá mate e comer pão, à tarde, com mais umas 30 pessoas da família.

Maionese na casa dos avós maternos! Comida para um batalhão!

Na casa dos avós paternos era um quitute melhor que o outro! Meu avô fazia pipoca (dessas que se estoura na panela). Ele chamava todas as netas e dizia que se não cantássemos, a pipoca não iria arrebentar. O enredo era sempre o mesmo, uma música de um comercial de guaraná (quem aí conhece?), 

“pipoca na panela, começa a arrebentar, pipoca com sal que sede que dá...”

Era infalível, era mágico! Todos os milhos estouravam! Sem a música, sem meu avó e sem suas netas essa pipoca não teria o mesmo sabor. Percebem? Isso é comida e afeto.

Comer guarda algo fantástico em si, mas cozinhar, ah! Cozinhar é um grande ato de afeto! Por meio da comida oferecemos energia, amor, desejos, expressamos prazer e desprazer. Alguém já foi em um restaurante no qual a comida tinha gosto da casa da vó, ou da mãe, do pai, tio, ou alguém que lhe marcou bem no estômago (rsrs)?

Cozinhar é um ato de puro amor! Quem oferece comida, oferta (se desejar) sua essência. Em um dos meus aniversários resolvi que tudo o que foi servido seria produzido por mim com a ajuda de familiares. E assim fizemos! Do bolo, aos biscoitos, antepasto de berinjela e bombons. Mas porquê isso? Naquele momento, eu queria me reconectar com o afeto e minha forma de expressão foi essa – a comida.

Doces do aniversário: bolo indiano com frutas e bombons (Arquivo pessoal)


O filme mexicano “Como água para Chocolate” (1992), baseado na obra de Laura Esquivel, retrata exatamente a relação entre comida e afeto. Sua teia gira entorno de Tita (uma jovem cozinheira), de Pedro (apaixonado por Tita) e do amor impossível que lhes circunda.

Em cada cena Tita evoca nos alimentos aquilo que ela sente. Em um trecho do filme ela se vê obrigada a cozinhar para o casamento de Pedro, com outra mulher, e ao preparar o bolo da festa Tita chora muito, resultado? Bolo bonito, bolo gostoso, e convidados chorando. Como disse, onde há comida, há afeto (podendo ser ele bom ou ruim) e a película expõe (talvez de forma aumentada) o poder do alimento e da relação estreita entre ele e as formas de afeição.

O filme é um clássico, com uma fotografia linda e cenas bem picantes (não sei informar a classificação), mas vale assistir! 

Cena do Filme "Como Água para Chocolate", momento no qual Tita está preparando: 
Codornas com pétalas de rosa!
(Fonte: google imagens)

No consultório ouço pessoas reclamando que não recebem carinho de familiares, mas ao olhar com cuidado acabam descobrindo que o fato de não receberem o carinho do modo como esperam não atesta a inexistência do amor, nem a falta da expressão do afeto. Muitas vezes a afeição foge do tradicional “beijo" e "eu te amo”.

Afeto também está presente em gestos como, “comprei esse doce para você”, “o que você quer comer hoje?”, uma fala de incentivo, ou ao fazer uma brincadeira para o outro sorrir e até mesmo nos momentos de silêncio. São infinitas as formas de cuidado e atenção.

Bem, e o que esse texto tem a ver com Buenos Aires? Eu o escrevi durante a viagem para lá, um momento de encontro comigo mesma de reconectar-me a minha essência! Até pude cozinhar para mim (depois explico isso melhor)! 

Resolvi prepara uma massa com camarão e brócolis!
Como dizem os Argentinos 'Mui rico'! (Arquivo pessoal)
E a cidade? Ela é linda, arborizada, cheia de teatros, e de gente conversando “apaixonadamente” (gesticulando e falando alto). Há um café em cada esquina, e é um hábito entre os portenhos frequentar esses lugares para conversar, comer, ler jornais. O Café Tortoni (fundado em 1858) foi onde tomei um dos melhores café com leite e fui muito bem atendida, vale a visita!

Esse é o Café Tortoni, localizado na Av. de Mayo, em Buenos Aires (Arquivo pessoal)

Eis meu singelo café da manhã no Tortoni! Delícia! (Arquivo pessoal)


Por fim, sugiro repensarmos os padrões sociais de expressão do afeto (isso não quer dizer aceitar abusos!) e nos perguntarmos como temos recebido, mas principalmente, como temos ofertado?

Beijos no coração e até o próximo post!





[1] Afeto aqui refere-se a tudo aquilo que toca (afeta), desse modo, pode ser também algo negativo.